Para além do aspecto meramente econômico, especialistas ouvidos pela DW veem nesse quadro um reflexo de como os papéis de gênero são encarados na hora de criar os filhos — revelando uma sociedade ainda machista e patriarcal, em que a maternidade parece mais valorizada do que a paternidade.
“A presença materna é celebrada com mais convicção. Até porque o pai pode até ‘não dar conta’ [da paternidade] porque tem a mãe para dar conta. Então acaba sendo aquela coisa da sociedade machista que privilegia os homens, como se o pai pudesse decidir não ser pai porque o filho será criado pela mãe”, comenta o psicanalista e palestrante Thiago Queiroz, pai de quatro crianças, autor do livro O Poder do Afeto e idealizador do site Paizinho, Vírgula!.
Quando encara a discrepância dos dados de faturamento entre as duas datas comemorativas, ele lembra que o Brasil tem milhares de crianças que nem sabem quem é o pai e outras tantas que são filhas de casais separados e não convivem com o progenitor. “É uma leitura sintomática: o cuidado paterno é marcado pela ausência”, afirma. “Como você presenteia a ausência?”
Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) apontam que, dos quase 26 milhões de nascimentos registrados em cartórios no país somente de 2016 para cá, 1,4 milhão (5%) não têm pai declarado.
Já uma análise da Fundação Getúlio Vargas revelou que, em 2022, mais de 11 milhões de mães criavam seus filhos sozinhas no Brasil.
“Apelo emocional e cultural mais forte”
Economista da Associação Comercial de São Paulo (ACS), Ulisses Ruiz de Gamboa atribui a preponderância do Dias das Mães ao “apelo emocional e cultural mais forte”. Além disso, o Dia das Mães tem mais lastro social: a oficialização da data é anterior.
“Tradicionalmente, a figura materna está mais associada ao cuidado, ao afeto e à celebração familiar, o que impulsiona o consumo em diversos segmentos, como flores, perfumes, roupas, eletrodomésticos e experiências afetivas”, diz ele, acrescentando que o Dia dos Pais também tem “padrões de consumo menos consolidados”.
A questão, portanto, passa pela maneira como a própria sociedade enxerga as funções da mãe e as funções do pai.
“Essa diferença revela tanto a centralidade histórica e cultural do papel materno na sociedade brasileira quanto a construção social de gênero que associa a mulher mais diretamente ao cuidado e à afetividade”, avalia a psicóloga Mariana Malvezzi, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Oficialmente, o Dia das Mães foi oficializado no Brasil em 1932. Já o Dia dos Pais foi inventado em 1953, por ideia do publicitário Sylvio Bhering. De início, a data era fixa: 16 de agosto. Décadas mais tarde, mudou para o segundo domingo do mês. Mas só pegou mesmo, em termos comerciais, a partir dos anos 1970.
Machismo estrutural
Para especialistas, não dá para ver esses dados econômicos sem entender que eles refletem uma construção historicamente patriarcal sobre os papéis de gênero.
“É um traço machista e misógino da sociedade na qual a gente vive o fato de a mãe estar sobrecarregada e ser exigida que ela seja a única pessoa responsável realmente pelo cuidado do filho”, diz Queiroz.
O que ocorre é que, no imaginário coletivo, a figura paterna ainda tende a ser vista como a que fica no papel de provedor, enquanto a responsabilidade afetiva, do cuidado e da educação recai sobre as mães. Ou seja: os dois não ocupam o mesmo espaço emocional e simbólico. E o próprio pai, muitas vezes, não se vê como alguém central na construção do vínculo e das memórias afetivas.
“Na prática, isso gera uma desconexão: a criança cresce vendo a mãe como a principal referência afetiva e o pai como alguém que está mais na borda do cotidiano”, explica a neurocientista Telma Abrahão, autora do livro Educar é um ato de amor, mas também de ciência.
Ela ressalta que isso tem tudo a ver com o consumo porque, especialmente em datas comemorativas, a compra de um presente “costuma ser uma tentativa de simbolizar afeto”. “Se o pai é visto como menos presente emocionalmente, a data também perde força simbólica e, consequentemente, perde força comercial.”
Por toda essa construção sócio-histórica, o Dia dos Pais carrega o peso de uma representação do papel distante do provedor — e não da proximidade calorosa do cuidador. “Isso impacta o engajamento da data”, conclui a psicóloga Dani Fioravante, autora do livro Eduque sem medo de errar (nem de acertar!).
Como melhorar o cenário
Mas o cenário está mudando. Cada vez mais se vê pais que entendem que seu papel não é simplesmente pagar contas ou mesmo “ajudar” a mãe. Queiroz conta que em suas palestras tem observado essa mudança de postura, e fica feliz em perceber mais e mais figuras paternas entendendo que a criação precisa ser conjunta — das tarefas diárias ao carinho constante.
Isso se reflete até na publicidade, já que a própria data comemorativa, como costuma ocorrer em casos assim, foi uma invenção de marqueteiros. As campanhas de Dia dos Pais, em geral, também têm realizado um deslocamento de significado, deixando de focar no papel de homem-provedor para apresentar a figura de um pai amoroso e presente.
“Temos visto um movimento nesse sentido”, observa Malvezzi. “Marcas […] têm investido em narrativas que refletem a paternidade ativa e diversa, incluindo pais que choram, cuidam e representam diferentes configurações familiares.”
O psicanalista Queiroz acredita que a mudança social só vai ser realmente efetiva quando homens passarem a conversar entre si sobre a paternidade — um exercício muito raro, diga-se.
“A gente não conversa [sobre isso] entre a gente. É esse pacto do silêncio que só serve para reforçar essa sociedade machista e patriarcal que continua sobrecarregando as mulheres”, reconhece.