Com as Nações Unidas alertando para um “risco de fome em massa” em Gaza, o braço executivo da UE propôs proibir startups israelenses de acessar fundos de pesquisa europeus.
“Com sua intervenção na Faixa de Gaza e a consequente catástrofe humanitária, incluindo milhares de mortes de civis e o aumento acelerado de casos de desnutrição extrema, especialmente entre crianças, Israel está violando direitos humanos e o direito humanitário, e assim descumprindo um princípio essencial da cooperação UE-Israel”, escreveu a Comissão Europeia em sua proposta na última segunda-feira.
O ministério das Relações Exteriores de Israel classificou o plano de Bruxelas como “injustificado” e afirmou que qualquer medida punitiva só serviria para “fortalecer o Hamas”.
No entanto, a nova proposta não chegou a ser votada, como previsto, pois membros como Alemanha e Itália pediram mais tempo para avaliar a estratégia. Sem o apoio de Berlim, é improvável que a sanção avance, uma vez que precisa de uma maioria qualificada para se tornar regra.
Para Bushra Khalidi, da Oxfam, agora há uma clara pressão crescente em alguns setores da Comissão Europeia para forçar uma mudança de rumo do bloco em relação a Israel.
“Mas sejamos claros. O fato de que a UE não consegue nem mesmo concordar com o menor passo é uma vergonha. A régua está no chão, e ainda assim a UE e alguns países conseguem tropeçar nela”, afirmou à DW.
Bloco dividido
Desde os ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023, a UE tem estado unida na condenação ao grupo palestino – classificado como organização terrorista pelo bloco – e no apelo pela libertação dos reféns israelenses.
Com exceção deste tópico, porém, todo posicionamento que afeta os laços com Israel tem sido debatido dentro de um bloco profundamente dividido.
De um lado, estão países como Espanha e Irlanda que, desde fevereiro de 2024, pedem uma “revisão urgente” do acordo que regula o comércio do bloco com Israel. França e Portugal também têm defendido um posicionamento mais duro.
Do outro lado, a Hungria é vista como o aliado mais firme de Israel, bloqueando qualquer medida que exija apoio unânime – como sanções contra a violência cometida por colonos israelenses na Cisjordânia. Ela é seguida por Bulgária e República Tcheca, que se opõem a medidas punitivas concretas.
Berlim também é uma aliada próxima de Israel. A Alemanha considera ter uma responsabilidade histórica pela segurança israelense, devido ao seu passado nazista e ao assassinato sistemático de seis milhões de judeus durante o Holocausto. Contudo, vem aos poucos endurecendo o tom contra o governo de Netanyahu e exigindo medidas humanitárias em Gaza.
Ponto de virada nas relações UE-Israel?
Os primeiros sinais de mudança diplomática surgiram em maio deste ano, quando a maioria dos 27 membros do bloco apoiou o pedido da Espanha e da Irlanda para revisar o Acordo de Associação UE-Israel – um pacto de livre-comércio que regula as relações políticas e econômicas entre as duas partes.
Entre os países que mudaram de lado e provocaram esse ponto de virada estava a Holanda.
A Alemanha manteve sua posição contrária e alertou contra a revisão, defendendo o diálogo. No entanto, Berlim foi vencida e a investigação avançou. A revisão apontou uma série de possíveis violações por parte de Israel, incluindo bloqueio à entrada de ajuda em Gaza, ataques a hospitais e jornalistas, e a expansão de assentamentos ilegais.
Em uma carta vista pela DW, Israel criticou a revisão, chamando-a de “fracasso moral e metodológico” e alegando que os relatórios da ONU em que ela se baseou eram “tudo, menos imparciais”.
Mas o braço executivo da UE manteve suas conclusões e, em junho, a maioria dos Estados da UE pediu que fossem elaboradas possíveis medidas punitivas.
Junho: opções de ação
De acordo com um documento interno vazado, essa lista inclui a suspensão da isenção de vistos para cidadãos israelenses, restrição a intercâmbios estudantis, proibição de importações de assentamentos ilegais e sanções contra alguns ministros israelenses.
Algumas dessas pautas, como as sanções direcionadas, exigiriam apoio unânime da UE. Outras, como as restrições comerciais, precisam apenas de aprovação por maioria qualificada dos governos.
Mesmo nestes casos, seria necessário o aval de Estados que representem ao menos 65% da população do bloco. Entre eles, os mais populosos como Alemanha, França, Itália, Espanha e Polônia têm maior peso na votação.
Julho: acordo malsucedido?
Com essas opções na mesa, a chefe de diplomacia da UE, Kaja Kallas, se reuniu com sua contraparte israelense e anunciou um acordo poucos dias antes de os ministros da UE discutirem medidas punitivas.
“Israel concordou com passos significativos para melhorar a situação humanitária na Faixa de Gaza”, disse Kallas em nota no dia 10 de julho. A Alemanha também ajudou a intermediar o chamado “entendimento comum”.
Segundo autoridades da UE, os compromissos de Israel incluíam facilitar um “aumento substancial” de caminhões entrando em Gaza e reabrir algumas rotas de ajuda. Quando os ministros da UE se reuniram em 15 de julho, decidiram não avançar em nenhuma medida contra Israel, pedindo apenas relatórios regulares sobre o cumprimento do novo acordo.
O ministro das Relações Exteriores de Israel chamou o resultado de “importante sucesso diplomático”.
“Conseguimos impedir todos os tipos de tentativas obsessivas de alguns países de impor sanções a Israel na UE”, escreveu Gideon Saar na rede X naquele dia.
Entretanto, com o passar de julho e o aumento dos alertas de fome, a estratégia diplomática de Bruxelas se tornou menos eficaz.
A promessa de Israel só se efetivou no final do mês, após uma centena de organizações internacionais denunciarem a existência de “fome em massa” em Gaza e mortes por desnutrição se multiplicarem.
O governo israelense disse à DW que “começou a implementar medidas significativas para facilitar a ajuda humanitária”, incluindo pausas nos combates e a designação de rotas seguras para entrega de alimentos. A nota culpou a ONU e o Hamas pela crise e afirmou que não há fome em Gaza – apesar de evidências sugerirem o contrário.
Próximos passos: Espanha e Suécia querem congelar acordo comercial
No entanto, muitos governos europeus consideram que as medidas de Israel estão muito aquém do necessário. O bloqueio ao financiamento de startups foi pautado um dia após Israel reabrir vias de acesso de ajuda humanitária em Gaza. Para ministros da UE, a medida não foi suficiente.
“O esforço diplomático com as autoridades israelenses tem sido intenso em vários níveis, mas não levou a uma mudança significativa e sustentável da situação no terreno”, diz a Comissão Europeia na justificativa do projeto.
“Houve algum progresso”, disse nesta sexta-feira a comissária europeia de ajuda humanitária, Hadja Lahbib. “Mas sejamos honestos: ainda é uma gota no oceano. Sem acesso, não conseguimos avaliar adequadamente as necessidades ou entregar ajuda.”
Alguns países, incluindo Suécia, Holanda e Espanha, defendem abertamente que a UE vá além e congele o acordo comercial que tem com Israel. Isso tornaria mais caro e difícil para as empresas israelenses exportarem para o bloco, seu maior parceiro comercial.
“A situação em Gaza é absolutamente deplorável, e Israel não está cumprindo suas obrigações mais básicas nem os compromissos assumidos em relação à ajuda humanitária”, escreveu na quinta-feira o primeiro-ministro sueco Ulf Kristersson na rede X. “A pressão econômica sobre Israel precisa aumentar.”
Ações unilaterais de Estados da UE
Restringir o comércio é uma competência que cabe ao braço executivo da UE, em Bruxelas, ou seja, os governos nacionais não podem tomar esta decisão unilateralmente.
Mas alguns Estados membros seguem outros caminhos para aumentar a pressão sobre Benjamin Netanyahu. Diversos países, incluindo Espanha e Bélgica, restringiram exportações de armas para Israel. E como sanções a nível da UE parecem improváveis, Eslovênia e Holanda também proibiram, no início deste mês, a entrada de dois ministros israelenses de extrema-direita, acusando-os de promover “limpeza étnica”.
A França, por sua vez, decidiu reconhecer os territórios palestinos como um Estado.
Este também é um movimento avaliado pelo Reino Unido, que não compõe a UE, mas sugere cada vez mais medidas punitivas e já impôs sanções contra Israel.
Em visita a Israel na quinta-feira, o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Johann Wadephul, alertou seu homólogo israelense de que ele corre risco de isolamento.
Wadephul também disse que Berlim responderia a quaisquer ações unilaterais por parte de Israel e criticou os possíveis planos de anexar a Cisjordânia ocupada.
Capitais de toda a Europa acompanharam a visita com atenção, porque mudanças na posição da Alemanha podem definir se as penalidades planejadas pela UE sairão do papel ou continuarão sendo apenas uma ameaça vazia.