Além de equiparar essas síndromes a uma deficiência, a nova lei determina que o governo federal implemente um programa nacional voltado à organização do atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS).
Embora o acesso integral ao tratamento já fosse previsto em lei antes, a legislação recém-sancionada detalha como esse atendimento deve ser conduzido. Entre os pontos estabelecidos estão: a oferta de cuidado multidisciplinar, ações de conscientização sobre essas doenças, capacitação de profissionais da rede pública, apoio às famílias, incentivo à pesquisa científica e estímulo à reinserção dos pacientes no mercado de trabalho.
Torres espera que a mudança dê mais visibilidade aos pacientes que, assim como ela, sofrem todos os dias com os efeitos da síndrome. Segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia, a condição aflige de 2% a 3% da população brasileira –
o equivalente a até 6 milhões de pessoas, segundo os números do Censo de 2022 –, com uma maior incidência em mulheres do que em homens.
Sintomas e diagnóstico tardio
Foi somente em 2019, depois de ir a diversos médicos, que Torres conseguiu fechar o diagnóstico para sua condição. Segundo ela, foram quase três anos até os especialistas confirmarem o que ela tinha. “Sofria com fadiga, consultava clínicos e cardiologistas e ninguém descobria meu problema. Até que um clínico me aconselhou ir a um reumatologista”, diz.
Ela sentia dores crônicas e relata que, muitas vezes, chegou a cancelar compromissos familiares de última hora – até mesmo o casamento do irmão e o batismo do próprio afilhado. A gravidade dos sintomas era tal que ela foi afastada do trabalho por um ano em 2024.
“É uma dor que você não consegue fazer nada. É algo que lateja, como um tombo ou um soco nas costas. Ela queima como se estivesse com febre, em todo o corpo”, diz.
Segundo especialistas ouvidos pela DW, o diagnóstico da fibromialgia costuma ser demorado porque não há exames laboratoriais ou de imagem que confirmem a condição. A identificação depende da avaliação clínica e da exclusão de outras doenças.
Maurício Leite, ortopedista e membro titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), explica que a síndrome é caracterizada por vários sintomas, dificultando o diagnóstico rápido.
“É uma dor que não passa, uma dor crônica que pode atingir múltiplos membros. Ela está associada a depressão, alterações do sono, do trânsito intestinal. São múltiplos fatores que precisam ser investigados durante uma boa avaliação clínica”, afirma.
Com o passar dos anos, os sintomas de Torres pioraram e ela precisou se tratar com medicações fortes. “Eu cheguei a tomar opioides de tanta dor que fiquei. Cheguei no nível 10”, relata. Muitas vezes, chegou a ser carregada ou ter auxílio de uma cadeira de rodas. “Já precisei sair correndo da fila do mercado porque senti que ia desmaiar de tanta dor.”
Atualmente, ela gasta pouco mais de R$ 1.000 com medicações para tratar a síndrome e segue fazendo acompanhamento médico. “Nenhum ser humano nasceu para ficar com dor”, desabafa.
Estigma afeta rotina
O reconhecimento da fibromialgia como deficiência pode representar um avanço na forma como pacientes são acolhidos pelo sistema de saúde e pela sociedade. Durante décadas, a condição foi tratada com desconfiança, inclusive por profissionais da área médica, o que dificultava tanto o diagnóstico quanto o início de um tratamento adequado.
“Sofri discriminação. Não nasci com fibromialgia, eu adoeci por fibromialgia, e entrei numa depressão grave. Não faltei aos compromissos porque quis. Muitas vezes, a cabeça quer ir e o corpo não”, enfatiza Nathália.
O relato dela traduz o que muitos pacientes sentem ao lidar com julgamentos e incompreensão, mesmo diante de limitações reais e incapacitantes.
Segundo o ortopedista Lúcio Gusmão, especialista em dor crônica e em medicina regenerativa, a dor crônica provocada pela síndrome não está relacionada a inflamações ou lesões visíveis, mas sim a uma sensibilização do sistema nervoso central. Isso faz o corpo reagir de forma exagerada a estímulos normalmente não dolorosos, levando à limitação de movimentos, incapacidade funcional temporária e perda de autonomia, o que pode resultar em isolamento social e dependência de terceiros.
No ambiente de trabalho, as consequências vão desde afastamentos frequentes até aposentadorias por invalidez. “Eu já acompanhei casos de demissão, perda de bolsa de estudo, e principalmente essa exclusão social”, relata o médico.
Além disso, os custos com exames, consultas e medicamentos afetam não apenas o paciente, mas toda a estrutura familiar, já que o tratamento é contínuo e multidisciplinar.
Leite reforça também que muitos pacientes ainda são vistos como preguiçosos ou pouco comprometidos, o que agrava o sofrimento psicológico. Ele acredita que a nova legislação, junto com a criação de centros especializados, pode ajudar a reduzir o tempo de diagnóstico e minimizar os impactos da doença na vida profissional e social dessas pessoas.
O que muda na prática com a nova lei
A nova lei reconhece pessoas com fibromialgia como pessoas com deficiência. Isso garante o acesso aos direitos previstos na Lei Brasileira de Inclusão e na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem status de norma constitucional no Brasil. Para isso, será necessário apresentar laudo médico com base nos critérios clínicos do CID 11 (MG30.01) e, em alguns casos, passar por perícias para obtenção de benefícios previdenciários ou assistenciais.
Entre os principais direitos assegurados estão o acesso gratuito ao transporte público, isenção de impostos em determinadas situações (isenção de IPI e, dependendo do estado, de ICMS e IPVA na compra de veículos), pagamento de meia-entrada em eventos culturais, como cinemas, teatros e shows, além da prioridade de atendimento em estabelecimentos públicos e privados.
A legislação também contempla o direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade social. Outro direito garantido é o custeio de deslocamento e hospedagem para tratamento médico em outros municípios, incluindo o acompanhante, desde que o atendimento seja feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo Marcelo Válio, especialista em Direitos dos Vulneráveis e mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, a concretização do acesso total aos direitos dependerá de regulamentação que ainda será definida até 2026, com a possibilidade de adequações em âmbito federal, estadual e municipal.
Ele afirma ainda que o reconhecimento representa um avanço importante, mas alerta que o combate à discriminação ainda depende de conscientização e da denúncia de atitudes capacitistas, previstas como crime no artigo 88 da Lei Brasileira de Inclusão. “Abre-se uma grande oportunidade de que outras deficiências invisíveis também sejam reconhecidas legalmente por meio de novas legislações, como é o caso da Síndrome de Burnout, que ainda carece de proteção mais específica”, diz Válio.
“É um avanço relevante para as pessoas com fibromialgia. O cotidiano ainda pode trazer dificuldades, mas os direitos estão assegurados. E caso não sejam respeitados, é essencial buscá-los, porque o direito não socorre os que dormem”, opina.
Para Nathália, a nova legislação representa um passo importante para tornar visível o impacto da síndrome. “Ela vai servir para mostrar a gravidade da síndrome para a sociedade e para o governo. E a forma como nós somos tratados. Certamente agora terá um tratamento mais humano e digno. Eles vão saber de fato como é a síndrome.”